Arquivo para julho, 2010

A chave do Céu

quinta-feira, julho 8th, 2010

 

Pouco antes de morrer, Frei Lourenço começou a pedir com insistência para lhe trazerem “a chave do Céu”. Mas ninguém estava entendendo o que ele queria dizer…

 

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Irmã Daniela Ayau Valladares, EP

 

Cada vez que passava em frente ao convento dos franciscanos de sua pequena cidade, Lourenço sentia o coração bater mais forte. Gostava de ficar ouvindo do lado de fora o canto suave dos frades, vindo da igreja. Aquelas melodias angélicas, cheias de uma paz que não era deste mundo, pareciam provir do Céu. Outras vezes, ficava espiando os monges enquanto trabalhavam na horta e pensava: “Como eles são alegres! O irmão cozinheiro, carregando tomates, é mais feliz que os meus arrogantes companheiros se exibindo pela rua em seus ruidosos carros”.

 

Aos domingos, Lourenço assistia à pregação e depois meditava nas palavras do frade de feições austeras e voz possante: “Lembrai-vos sempre, irmãos, que mais importa guardar tesouros no Céu ao invés de multiplicá-los na Terra. O Senhor nos ensinou: ‘De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder sua própria alma?’. Vede o exemplo de nosso pai São Francisco: soube ser pobre em espírito”.

 

Um dia, não resistiu e perguntou a um franciscano:

 

– O que devo fazer para morar aqui?

 

O bom religioso deu-lhe uma resposta muito simples:

 

– Para viver abrigado por estas santas paredes é preciso desejar acima de tudo o Reino dos Céus, abraçando a pobreza em espírito, como fez Jesus.

 

Uma semana depois, o jovem, carregando apenas uma malinha, entrava no convento para não mais sair. Pediu para ser irmão leigo, pois queria viver só para Deus, servindo os frades.

 

O mestre de noviços, que passou a acompanhá-lo, se encantava com o exemplo do Irmão Lourenço. Ninguém varria o chão ou lavava os pratos com maior entusiasmo; todas as suas ações pareciam uma prece.

 

Um dia, Irmão Lourenço notou o hábito de um frade em mau estado, e comentou:

 

– Vejo que sua manga está rasgada. Quer que a costure? Senão, quando o irmão for para as missões, as pessoas vão reparar. Somos pobres, mas dignos, e não fica bem usar um hábito rasgado… Se me permitir prestar-lhe tal serviço me estará concedendo uma graça, pois sou um pecador e tenho faltas a reparar.

 

– Mas tu sabes costurar?

 

– Não muito bem… Porém, minha mãe é costureira e com ela aprendi algumas lições do ofício.

 

– Está bem – concluiu o frade -, vamos ver como sai o serviço.

 

Surpreendendo a todos, Irmão Lourenço fez um trabalho exímio. A cada ponto com a agulha tinha rezado uma jaculatória pedindo que a Santíssima Virgem de Nazaré costurasse por ele. Quando acabava a linha, rezava uma Ave-Maria. Dessa forma, cerziu a manga inteira, deixando- a como se fosse nova.

 

A notícia se espalhou pelo convento. Não demorou muito em aparecer o irmão cozinheiro com uma roupa queimada, quase perdida por causa de um forno muito forte. Também o irmão porteiro veio mostrar um buraco no seu hábito que, embora escondido, já estava ficando grande. Até mesmo certo frade estrangeiro, hospedado ali por alguns dias, pediu ao irmão que desse um jeitinho em sua velha vestimenta. Os hábitos voltavam cosidos, limpos e perfumados.

 

O superior se alegrou com a descoberta. Admirado ao ver a despretensão daquele filho, logo notou a assiduidade de suas visitas ao Santíssimo Sacramento. “É por isso que tudo faz com tanto primor”, pensava.

 

Passados alguns meses, ele percebeu que os dotes de Irmão Lourenço podiam ir além da habilidade de fazer remendos.

 

– Quer tentar fazer um hábito inteiro? – perguntou-lhe.

 

– Se com isso eu puder dar glória a Deus, perfeitamente!

 

A experiência foi coroada de êxito. Das mãos “orantes” daquele religioso, começaram a sair maravilhas acima das expectativas. Nelas a tesoura tomava vida e corria pelo tecido marrom em traçados tão certeiros, que o melhor dos alfaiates não poderia superar. Os hábitos continuavam modestos, mas possuíam algo de especial: a marca do amor com que o irmão os fazia.

 

Passaram-se os anos. Por vezes, a quantidade de pedidos o levava a dormir muito pouco, a perder as horas de recreação, e ele sentia a tentação de julgar que assim também já era demais… Mas logo pensava que Deus o chamara para glorificá-Lo daquela forma, e esse motivo o levava a dedicar-se por inteiro, redobrando as orações.

 

Irmão Lourenço tornou-se um homem maduro e, com o tempo, um ancião. Seus cabelos ficaram prateados, mas nem por isso deixou de atender os pedidos de remendos e costuras.

 

A comunidade o estimava e admirava. Muitos frades famosos, pregadores em santuários e professores em universidades, gostavam de estar com ele, formando rodas animadas de conversas sobre o Seráfico São Francisco, Santa Clara e outros heróis da Ordem. Irmão Lourenço atraía a todos, falando só sobre coisas do Céu. E era para lá que caminhava…

 

O implacável peso dos anos trouxe- lhe uma febre incurável, que começou a consumi-lo. Pressentindo a partida desta vida, ele pediu os Sacramentos e passou a falar cada vez menos. Rezava muito e pensava no encontro com Deus.

 

Numa madrugada gélida de inverno, Frei Lourenço parecia não resistir mais. O sino do convento chamou a comunidade para acompanhar o querido irmão, em seus últimos momentos. Ajoelhados, rezavam a oração dos agonizantes. De repente, um fio de voz quase imperceptível foi ouvido. Era Irmão Lourenço que pedia:

 

– Tragam-me a chave… a chave do Céu…

 

Os frades não entenderam. Qual seria essa “chave do Céu”? Um deles saiu correndo rumo à biblioteca e voltou com um livro chamado A chave do Céu. Colocaram-no diante do moribundo, mas ele não se interessou. Apenas repetiu:

 

– Eu quero… a chave… a chave do Céu…

 

O superior mandou que trouxessem uma relíquia de São Francisco, à qual o enfermo tinha muita devoção. Mas ele seguia com seu raro pedido…

 

Então, a fisionomia de um irmão se iluminou. Cruzou rapidamente os corredores e voltou com a agulha de Irmão Lourenço. Ao vê-la, este esboçou um sorriso e disse:

 

– Sim, esta é minha chave do Céu! – e expirou.

 

* * *

 

Sem ser grande aos olhos do mundo, nem receber recompensa por seus serviços, Irmão Lourenço se santificara com uma agulha na mão, trabalhando por amor a Deus. Para cada um a Providência tem preparada uma “chave” que lhe abrirá o Céu. Trata-se de saber cumprir sua vontade e seus desígnios. “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5, 3).

 

(Revista Arautos do Evangelho, Maio/2010, n. 101, p. 46-47)

 

Servo bom e fiel

quarta-feira, julho 7th, 2010


Ante a resposta cheia de sabedoria daquele servo bom e fiel, o rico mercador não podia tomar outra atitude senão reconhecer: “Você tem razão!”.

 

junho

 

Irmã Lucía Ordoñez Cebolla, EP

 

Nas ensolaradas e cálidas terras do Oriente, vivia um rico mercador chamado Samuel. Estava sempre bem vestido com longa túnica dourada, cingida por uma larga faixa azul clara, e portando um turbante vermelho, ornado por uma ametista.

 

Tinha a face tostada pelos raios solares e seu grosso bigode ia diminuindo de espessura até formar duas finas pontas voltadas para cima.

 

Era muito esperto e inteligente. Os habitantes da região o conheciam bem, mas, com sua aparência de homem respeitável e sua grande rapidez de raciocínio, ludibriava os viajantes pouco informados, levando-os a pagar um preço excessivo pelas suas mercadorias – tapetes, perfumes, porcelanas e tecidos – e a ficar com a certeza de ter feito uma excelente aquisição. Desta forma, seus negócios rendiam-lhe altos lucros, e ele tornou-se um dos homens mais ricos do lugar.

 

Exitoso e abastado, Samuel tinha uma total confiança em si mesmo e, apesar de ser cristão, nunca rezava nem frequentava os Sacramentos. Sua mãe, Dona Clementina, pelo contrário era muito religiosa e insistia com ele:

 

– Meu filho… é preciso cumprir os Mandamentos, rezar, ir à Missa aos domingos!

 

Samuel costumava responder-lhe:

 

– Sabe, mãe, tudo está nas mãos de Deus. Portanto, se Ele quiser me levar para o Céu, levará sem que eu precise ir à igreja, receber os Sacramentos ou rezar. E se Ele não quiser, não adianta rezar, porque não me salvarei, ainda que pratique muitos atos de piedade.

 

A boa senhora lhe explicava:

 

– Não é assim, meu filho. Já dizia Santo Agostinho: “Deus que te criou sem ti, não te salvará sem ti”! Tudo está nas mãos de Deus, é verdade, mas assim como Ele nos amou, dando-nos a existência, quer nossa retribuição e participação para salvar nossa alma.

 

Ora, mãe, Ele fará tudo segundo a vontade d’Ele mesmo… Disso ninguém escapa.

 

Com muita frequência tal diálogo se repetia. E aquela boa mãe não podia fazer outra coisa senão rezar pelo filho.

 

José, o empregado da casa, era muito piedoso e dedicado aos patrões. Pessoa simples, mas perspicaz, observava em silêncio as pequenas discussões da mãe com o filho e pensava que deveria haver alguma resposta para dar ao patrão. Concordava com sua afirmação de que tudo está nas mãos de Deus, mas não podia aceitar que as orações, os Sacramentos e os atos de piedade fossem coisas inúteis. Não podia ser em vão que Nosso Senhor nos ensinou a suplicar o auxílio divino, pois Ele mesmo disse: “Pedi e recebereis; buscai e achareis; batei e a porta vos será aberta. Pois todo aquele que pede, recebe; quem procura, acha; e a quem bate, se abrirá” (Lc 11, 9-10).

 

E José dizia de si para consigo:

 

– Vou pedir ao Divino Espírito Santo que me ilumine e, algum dia, encontrarei um meio para desmontar este pensamento errado de meu patrão, que só serve para justificar seu relaxamento.

 

Não tardou muito para chegar a esperada oportunidade!…

 

Numa manhã, Samuel despertou sentindo-se muito doente. Doía-lhe a cabeça, e nem tinha forças para sair da cama. Preocupado, chamou o servo e lhe disse:

 

– José, amanheci sentindo-me muito mal. Nem consigo levantar-me. Por favor, procure o Dr. Adeodato e diga-lhe para vir bem depressa.

 

O bom homem saiu do quarto do patrão e pôs-se a rezar. Havia encontrado a oportunidade que tanto esperava! Mas aguardaria até o entardecer…

 

Aquele dia passou muito lentamente para Samuel. Seu mal-estar não diminuía. Entre dormitar e sentir dor, ficou muitas horas esperando a visita do médico, que parecia nunca chegar!

 

Quando a tarde já terminava, chamou de novo o empregado e perguntou-lhe:

 

– José, que aconteceu? Por que não apareceu aqui o médico?

 

Com simplicidade, José lhe respondeu:

 

– Meu bom patrão, o senhor sempre repete que tudo está nas mãos de Deus e nada depende de nós. Então eu pensei assim: se Deus quiser que o patrão sare, com médico ou sem médico ele vai sarar. Mas se Deus não quiser, então nem adianta médico, porque ele vai morrer de qualquer forma… Por isso não chamei o Dr. Adeodato.

 

Samuel ficou vermelho de raiva, porque o criado não cumprira sua ordem… ou talvez de vergonha, ao ouvir as palavras cheias de bom senso daquele homem. E José ainda continuou:

 

– Aprendi com o senhor este raciocínio. Se, como o senhor sempre diz, ele é certo para a saúde da alma, deve ser também para a do corpo…

 

Samuel, neste momento, foi tocado pela graça e se deu conta de quantas vezes usou sua capacidade de fazer bons raciocínios para justificar seus próprios erros. E ante a resposta cheia de sabedoria daquele servo bom e fiel, o rico mercador não podia tomar outra atitude senão reconhecer:

 

– Você tem razão! Como estou errado por pensar assim! Por favor, chame o médico para cuidar da saúde de meu corpo e prometo, de agora em diante, cuidar mais de minha alma!

 

Prontamente José chamou o doutor e este não tardou em chegar. Samuel tomou os remédios indicados e logo começou a melhorar.

 

No domingo seguinte, Dona Clementina teve a surpresa de ver que o filho a acompanharia à Missa. E mais espantada ficou ao vê-lo buscar a fila do confessionário e, depois, participar do Sagrado Banquete da Eucaristia.

 

Samuel nunca mais abandonou a vida de piedade. Passou a vender suas mercadorias a um preço justo e a dedicar boa parte dos lucros a obras de caridade, o que lhe fez ganhar o afeto e o respeito dos seus conterrâneos. E manifestou sempre gratidão a José, por este ter sido – com suas orações, esperteza e paciência – o instrumento de Deus para a sua conversão.

 

(Revista Arautos do Evangelho, Junho/2010, n. 102, n. 46-47)

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